sábado, 6 de fevereiro de 2010

O marinheiro

Era uma vez um marinheiro que tinha três barcos atracados numa marina. Ele ia de vez em quando ao mar viajar.
Ele gostava muito do mar. Aquelas ondas a balançar o barco faziam com que ele desequilibrasse os problemas, que se estendsiam por um planos mais infinito. Tocava no céu o fundo do olho do marinheiro enquanto navegava num oceano lindo, onde se cruzava com baleias, golfinhos, e lá no fundo imaginava estrelas do Mar, que habitavam num crepúsculo que ainda esperava ouvir histórias de poetas e cavaleiros da Idade Média -- histórias de gente nobre que carregava o peso do mundo como quem balança uma espada ou uma lança em desafio ao infinito.
Parava de pensar nisso e olhava em seu redor. O café com açúcar dava sabor à tarde que caía em cima dos ombros da cidade.
Já fazia muito tempo que não visitava os amigos do outro lado do estreito.
Havia muitas chamadas trocadas, muitas mensagens passadas de uma esperança a outra, como se tivessem de preparar uma viagem com uma ponte invisível, antes.
E então atravessou o olhar pela rua que se estendia até um fundo distante, onde sons inimagináveis se trocavam. Os raios do Sol mais meiguinho do dia não faziam imaginar a mais bela história que era a vida do marinheiro.
Ele lembrava-se agora do bosque sagrado, onde aprendera a amar os animais com uma simplicidade quase partilhada com a magia que o envolvia.
Acendeu um cigarro e uma lágrima cristalizou no interior da fluidez do silêncio.
Havia tantos autocarros na cidade e tanta gente espalhava e distribuía a sua vida pela cidade.
Era impossível haver mais humanidade do que aquela que espelhou o olhar do marinheiro pelo abstracto da cidade.
Pegou na mala, carteira, telemóvel, chaves e no livro de bolso que o acompanhava e foi comprar ao supermercado os mantimentos que necessitava para a sua viagem.
Cerveja, cigarros, pão, queijo, leite, fiambre. Talvez do outro lado manjasse umas amêijoas, já dentro dum esplendoros momento em que saborearia, em bons goles de vinho, a brilhante amizade que seus amigos proporcionavam.
Reluziu a barba por detrás da estrela Vénus e partiu para o outro lado do estreito.
Avistou a baía de Guantanamo. Esta vilazinha, perdida no meio das brumas da Suazilândia, era uma rica vila.
Tinha gente de todos os tipos, menos os maus.
Era uma elegia partidas por milhões de reflexos que pairavam no ar.
Havia jogo hoje na cidade, por isso ele sabia onde podia encontrar os amigos.
Metade estariam lá em baixo, no campo de futebol, a jogar pelo Jamaican Morning Sun, e a outra metade estaria naquela bancada, conversando sobre o belo dia que abençoara suas vidas.
Atracou o barco e saiu rua acima. Cumprimentou o Sr. Estevão, que à porta da tasca diletava-se com uma ópera que vinha de dentro da casa do vizinho do primeiro andar, para a rua, que transformava.
Saltou um gato no seu caminho, escondendo-se por detrás de um beco subtil.
Cerca de cem pessoas presenciavam a partida, que estava ainda a meio da primeira parte.
Cumprimentou metade dos amigos e sentou-se a observar o jogo, absorto por uma emoção tremelicante que conferia mais autenticidade ao jogo.
A bola cruzou dum lado para o outro do campo, amortecida e colocada ao rolanço do relvado, soltada de repente para o lado esquerdo, onde apareceu, cruzou e espalhou magia o ponta esquerda.
A bola atravessou em dois segundos metade da largura do campo e num pontapé acrobático foi ter ao fundo das redes e ali ficou, extasiado numa celebração que aproximava o perto, esquecia o longe.
Um respirar arfante invadiu a torcida e o marinheiro acendeu o cigarro.
Milhões de cores brilhavam na noite, soltadas por sorrisos, olhares, abraços e tudo o mais que aconteceu.
Ao final da noite, já mais abraçados e tranquilizados pelo vinho tinto, os amigos lembraram o golo com um sorriso único encarnado.
--5-1! Bom resultado pá!

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Orla marinha

Ao mesmo tempo que te amo vou sentindo saudade de quem sou...

Deixa sentir... a lua

Ela tinha atitudes em tudo incoerentes.
Ela tinha saudades, em tudo inocentes.

Deixava-me a pensar, sequer... será bom ou será mau?

Mas entretanto, deixava-me pensar. E eu ficava fascinando aquele mundo incrível.

Deixava na estrada rasteiras de areia, para que eu pudesse desfrutar da sombra azul de Mar que traziam.

Deixava cones na estrada, para que eu visse o vermelho de quem curva.

Ou deixava anteriores pensamentos, gritando na rua como se chamasse a noite -- eterna noite!

Deitava artérias, pulando, no chão.



E deixava-me enfim, desgasta de mim mesmo, cair no chão, como planta de inverno.

Feito lua fria, esguia, sentida, perdida na noite.



Ela tinha sentidos onde a estrada acabava.

Deixava-me pensar, em paz -- que mundo haverá?

E ao triturar
A noite
Pensando
A lua jazia

Mas entretanto, deixa-me pensar!

Fascinar esse mundo imóvel.

Deixa na estrada rasteiras de areia,
Eu quero entrar na gruta
Sombra azul do Mar
Sombra azul do Mar

Olhó vermelho
Pinta na chuva
Deixa a areia
Cavar tua lua...

Ou deixa...

Caminhar na lua...

Ou deixava pensamentos anteriores, falar mais alto, como se a noite cantasse, dentro de si.

Deixava artérias, pululantes, sentir o ritmo da lava.

Escrava, negra, batendo em mim.

E sentia a chuva, do céu a cair, como um grito, um desejo, sacado ao fim.

E deixava-me enfim, desgasta de mim mesmo, cair no chão, como planta de inverno.

Feito lua fria, esguia, sentida, perdida na noite.

Deixa entrar, caminhar na lua...
Deixa entrar, caminhar na lua...

Peça, presa,
Onde, estancas.

Ave, presa,
Nos-bar-rancos...

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Um incidente de estrada

O seu pensamento pairou no ar como se fosse voo de pássaro. Os prédios iluminados pelo Sol fizeram parte da absorção do seu pensamento. Quase que o conseguiu parar num segundo instantâneo. Sentiu as efervescências de calor e luz juntas num cântico silencioso que compunha o seu pensamento, esgotado de rumar indelevelmente por uma prosternação contínua, exígua.

Descansou o seu pensamento na pedra que compunha um prédio na paisagem que vislumbrava e pensou na composição do mármore, límpido e aclarado por polimentos constantes, cortes executados por feixes de luz atómica precisa e fatal.

A sua vida tinha-lhe oferecido uma compleição preocupada, pesada, algo desajeitada. Tremia por horizontes incomensuráveis que se estendiam no tempo até ao início do Universo.

Imaginou uma estrada onde Maria passeava de carro, sem saber para onde ir, esgotada também pelo tempo e apertada pela incerteza contra o volante do automóvel ligeiro que dirigia, a uma módica velocidade de 80km/hora, rumo a lado algum.

Maria estaria agora a estacionar numa cidade, outra cidade, repleta de sonhos, carícias (e a sua ausência), esquecida pela maior parte dos cidadãos que coabitavam este planeta terra, vastíssimo, tão vasto, sempre comprido demais.

Os últimos seis meses com Maria tinham sido estranhos. Uma relação que não pegava nem se desajustava ao seu dia-a-dia. A sua presença sentia-se por vezes esbatida contra uma luz de candeeiro no seu quarto de primeiro andar. Casa baixa, como tantas outras de Lisboa; o último andar seria o quinto.

Pensava nela quando perdia as forças, exausto dos afazeres do dia-a-dia, da semana-a-semana, do mês-a-mês, do ciclo infinito da vida que o trazia sempre ao mesmo lugar, parado no tempo, contemplando um horizonte que procurava o seu sentido desde os confins do tempo.

Parado no mar, ou na montanha, ou num segundo de situação económica complicada, em cada fundo de poço, em cada fim de aventura, em cada prata reluzindo na montra, em cada tiro largado na escuridão.

Nasceu de novo para a vida, como se o passar duma mensagem nunca esquecesse as outras. Como se em dois módicos segundos a vida se pudesse resumir num viagem abastado por crenças, temores, preocupações, vertigens, semáforos, luz, luz, luz...

Nasceu de novo uma lua no céu, num horizonte qualquer. Sentiu-o como antecipação dum arrepio.

sábado, 24 de outubro de 2009

Em casa

Em casa, duas borboletas pairavam na cozinha. Pairavam no tecto, ou na parede mas junto dele.

Sempre fora interessado pelo tópico da magia negra, embora não percebesse nada do assunto.

Tentou entoar uma canção:

E no sonho que lá vai
E se arranha pelo chão
E se lança pelo céu
E aperta a gravata

E pertence a um só céu
E pertence a uma lua...

É impossível ser coerente, pensou. "Com tanta humanidade a falhar... A única verdade é que ninguém é perfeito -- isto é, coerente."

A verdade

A verdade que saía de dentro dele recordava-lhe "fantasmas" internos. Não físicos (porque "fantasmas"), mas apenas memórias que o atormentavam, porque sentia que elas coloriam as paredes dos prédios onde habitava e o faziam sentir como se a parede doesse como ele.

Sentia-se impregnado e alcançado pela cidade em que habitava. Como se a vida humana que o rodeava lhe fosse outorgando um legado de humanidade -- tão premente, tão presente, e ao mesmo tempo carente de felicidade. Era patente que os sentimentos de rebeldia andavam à solta na cidade -- ingratidões não esquecidas, segundos da vida em que se tropeçara.

A cidade, no entanto, abrira-lhe as portas da alma como uma euforia constante, se esta fosse palpável nas noites frenéticas em que se esvaía do mundo numa discoteca algures, ou se perdia de sono num escritório, ou se maravilhasse com o Sol e a vida maravilhante que Macau possuía durante a tarde da semana laboral, em que a cidade (multiplicada em pessoas) se cruzava pelas ruas por volta do Banco Nacional Ultramarino.

Saíra de casa à procura de brisa. Uma tarde escaldante esperava-o quando parou no semáforo da Avenida Almeida Ribeiro, exactamente quando tencionava atravessar pedonalmente a avenida, vindo da esquina do Banco da China, dirigindo-se para a esquina do BNU.

Pensou na tristeza toda deste mundo e atravessou a rua, sabendo que o aguardava um futuro penoso, não digno da responsabilidade humana que lhe competia.

A sua vaidade natural quase se esvaiu e sentiu como se um atropelamento gigântico se lhe doesse na alma. As forças interiores obviamente não lhe estavam a poupar as vísceras, uma bifurcação interna.

O portfólio humano

O grito sai pelas entranhas silenciosas.

O homem quer colar-se à cidade, não só a que se vê de lá de fora, em andamento, mas também à que se vê daqui de dentro de casa.

O homem libertou-se ao ver adormecidos seus colegas e soltou-se feito fera. Longe dos ouvidos, dos zumbidos, das tristezas.

O homem grita porque quer estar presente na cidade. Porque quer ser parte da vida de toda a gente -- o grande desafio do Homem, ainda hoje. Os sentimentos de respeito e humildade, que parecem nos filmes muito fáceis de obter, na realidade são as "coisas" mais árduas de alcançar -- pelas honras se pejam os homens, lutando e brincando, numa corrente sem fim.

É por isso que eu me perco batalhando futilmente os meus dias, perdendo as horas que me são dadas num dia, ou num suspiro, ou numa recordação.

Perdido em mim mesmo, me acho de verdade. E a verdade que dali (do interior do meu corpo) sai é plena, fortificante, revigorante.